quarta-feira, 1 de junho de 2011
A BULA
A BULA
Não tinha apego à vida. O que não significa que desejava a morte. Seus cuidados com a saúde eram nenhum. Sedentário, não fazia exercícios, ação que julgava um grande excesso, era um móvel, movia-se por extrema necessidade e mais por força e ação do dia a dia que de sua vontade. Não tinha uma vida permeada por regras. Até gostaria de ser uma pessoa metódica, mas, não o era. Tinha manias, algumas esquisitas, poder-se-ia dizer “muito esquisitas”. Sua vida não era normal, mas não se poderia afirmar que era um excêntrico.
Não tinha o vigor criativo e doentio de Eugene O’neil, e talvez dele nunca tivesse ouvido falar, da tragédia não se encantava nem com o bode nem com os cantos, partes de um culto que lhe eram tão familiar quanto O’neil. Os problemas eternos do homem não o interessavam, o destino, as paixões e a justiça, eram para ele questões teóricas que acentuavam a desordem mental inerente a todo ser humano, preferia rir e tomar uns tragos, brindar o dúbio comportamento e o escárnio que sentia da sociedade. Era um homem de vanguarda, um obreiro, um para militar a serviço de sua própria tragicomédia.Obra original de sua autoria, que jamais iria contextualizar.
Sentia-se cheio de vida, e de sua saúde regozijava-se. Uma de suas manias era comprar remédios. Só para tê-los em casa, para ficar observando, uma coleção da qual podia debochar. Era realmente um homem de vanguarda.
Desprezava a ciência e os médicos, Sua hipocondria, era de colecionador, de vitrine. Que diria ele desta comparação?. Tinha na ponta da língua, diversos casos de erro médico, com detalhes de datas, vítimas e locais. Por não gostar da internet, gastava horas infindas em cartas, artigos e teses a revistas, jornais, programas de Tv e rádio. Tudo o que pudesse fazer para expressar seu repúdio a ciência de Hipocrates de Cós.
Tamanha era sua atuação, que chegava a ser conhecido de membros do Conselho de Medicina, que o odiavam. E por tratar-se de um Conselho muito corporativista, o contágio do repúdio circulava de médico em médico. “Dia da caça, dia do caçador”.
Certo dia foi acordado no meio da noite para socorrer um vizinho. Na verdade um grande desafeto. Não era nenhum estoicista, mas também não vivia somente para o prazer, afinal não se deve negar água a quem tem sede. Levou o indivíduo - termo usado por ele, para designar o vizinho doente – ao hospital, estacionou onde era possível, em frente a uma garagem, mas naquela hora não haveria de importunar ninguém, pois, somente iria despachar o indivíduo e sua família e voltar aos braços de Morfeu. Para sua surpresa, os minutinhos em que se demorara haviam se constituído em meia hora, e seu carro estava com os vidros laterais quebrados e fora empurrado para o meio da rua. Seu ódio, que quase sabia guardar bem, tomara-lhe todo o corpo e mente. Seu repúdio a classe médica e a necessidade da utilização de seus serviços tornara-se ali maior e maior...
Quando se dissipou parte de sua ira, pode ver o cartaz que pendia sob o portão de garagem que travara: “Não pare nem por um minuto, pois, se eu quiser entrar ou sair, serei obrigado a quebrar seu vidro lateral”.
Maldito hospital, malditos funcionários, maldita ambulância que não socorreu aquele besta fraco e malditos médicos, resmungou – por uma semana seguida. Era realmente um homem da oposição, da diferença. Seu conceito de realidade fazia-o destronar todo o pensamento em torno do pecado, moral e da graça. Embora tivesse pouca leitura e passasse a quilômetros de distância da intelectualidade filosófico-literária, tinha decorado uma passagem de Nietzche: “o que é bom? Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, à vontade de potência, a própria potência”.
Pois é, certa noite deleitou-se em Whisky. Foram duas garrafas de Jack Daniel's, e o coração gritou. Uma dor insuportável no peito, coisa séria. Nunca havia se sentido assim, aliás, jamais houvera sentido qualquer dor, mas, intuitivamente soube que aquela medida era exagerada. Dor e medo, no espartano, dor e medo – estava doente. Gritava feito criança, toda a casa estava nervosa. Os gritos chamaram a atenção da vizinhança e por seqüência ao tumulto, da polícia. Faltava a ambulância. O homem mudara de cor, arfava por não conseguir respirar.
Sua mulher sai aos gritos: Uma ambulância, uma ambulância. Essa chega, e quando adentra o imóvel, já é tarde, o homem caído no chão sobre uma imensidade enorme de frascos, vidros, tubos e ampolas de remédios dos mais variados tipos e tamanhos. Dava a impressão de que num último e gigantesco ímpeto, tentara alcançar a salvação no que tanto houvera desprezado. Preso a sua mão uma bula, que dizia, “não use este medicamento antes ou após ingerir bebidas alcoólicas. Não cessando os sintomas procure imediatamente um médico”.
O universo às vezes conspira contra. Não existe verdade mais absoluta que a própria realidade.
Sylvio Neto
Publicado no Recanto das Letras em 22/11/2005
Código do texto: T74947
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