segunda-feira, 30 de março de 2009

AFROREGGAE NUCLEO CANTAGALO: Nosso Bem e Mal de Cada Dia






Sexta feira passada, dia 27, dia do Circo subí o complexo Cantagalo/Pavão/Pavãozinho com duas amigas - a Priscila, de Taubaté, arquiteta e lindo e generoso espécime humano do gênero feminino por quem é difícil estar próximo e naum se apaixonar e a Lucy Grant,Inglesa de Londres, estudante de Ciencias Sociais da Universidade de Liverpool - para ter com a galera do Nucleo Cantagalo do AfroReggae.
A visita havia sido agendada pelas duas por conta da necessidade da Lucy em ter contato com politicas sociais de carater particular orquestradas pela iniciativa popular individual ou da sociedade civil organizada em prol da produção de uma auto estima, de uma ética e moral com fins a transformação social do ambiente onde se instala e ainda de uma nova identidade social que é parte de seu trabalho acadêmico que faz com intercâmbio junto a Universidade de Taubaté e a de Liverpool.
O que aconteceu será postado depois...Tentarei descrever as emoções que tivemos desde a subida do morro (comunidade/favela) até a descida e ainda um pouco do que rolou no pequeno filme que fizemos e pretendemos editar para uso particular da Lucy, da Pril e meu que será na Cia Ciematográfica da Bica da Mulata fomentadora do Cine Clube do Velho Brejo .

O que pretendo agora é publicar um micro conto que fiz em 2005 e publiquei no Recanto das Letras e que é exatamente a transformação proposta e executada pelo AfroReggae lá na comunidade...Só que meu conto trata de uma vida transformada e lá a coisa é coletiva..Transformam-se várias vidas...



NOSSO BEM E MAL DE CADA DIA

O homem é dual. Nasce assim, revestido do bem e do mal. O dualismo nasceu com o homem, cresceu junto à sua curiosidade e desenvolveu-se junto a seu desenvolvimento. A luta do bem contra o mal é primeiro interna, emana em cada ser e transcende influenciando toda a sociedade. O legendário Zoroastro escreveu o Zend-Avesta, ali fundamenta a eterna guerra, entre a luz do criador e protetor do bem Ahura-Mazda e as trevas de Arimã, deus do mal. Aqui, hoje e ainda amanhã, seremos influenciados pelo pensamento e cultura religiosa dos Medo-Persas. A paisagem dos grandes centros urbanos está regada de bem e mal. Cruzam-se estas duas forças, a todo o momento, nas ruas, nos sinais, nos mercados e cinemas. O olhar em volta estará impregnado de bem e mal, quando comparamos, mesmo de maneira non sense, a arquitetura moderna de prédios luxuosos de janelas espelhadas e revestidos em mármore negro com os barracos das várias favelas que coexistem no mesmo ambiente, um tanto como imposição e resistência. Acordar na favela não é poético, nem bonito como mostrado nas imagens do Orfeu, de Tony Garrido. Da paisagem vista da janela, pode-se dizer que o Vidigal mostra uma exceção, é um ponto fora da curva. A brisa, o frescor de um sol ralo e ainda frio, são adjetivos que não servem para descrever uma manhã na favela. O cheiro de esgoto é maior pela manhã, o choro das crianças e os pedaços de sacolés plásticos pelo chão, ainda sujos do produto principal, desta América que temos, é o que salta aos sentidos. Um dia de renovados sonhos, é aniquilado pelo odor e pela mesma paisagem ou até pelas gargalhadas de diversos calibres, anunciando a abertura da boca ou uma invasão policial. Viver dividido entre o trabalho de vapor e a atividade artístico musical no R.AP deixava-o confuso. Todas aquelas letras engajadas, denunciando e discriminando as atividades marginais do mundo do tráfico produziam em sua cabeça um misto de sonho e revolta. Era preciso tomar um rumo, buscava ler, experimentava conversar com os parceiros do crime, tentava compreender as diferenças ideológicas pregadas pela galera do Hip Hop. Em meio a enorme confusão mental que o afligia, transcorriam as etapas do festival de Hip Hop da Associação. Era preciso ter coragem para enfrentar-se, para decidir “se”. Estava impregnado de bem e de mal. Em certos momentos, pensava ser uma bomba relógio, um homem bomba palestino pronto a entregar seu destino. Mas tinha de vender a carga, para alimentar sua mãe e irmãos. Tinha dois talentos, tinha duas escolhas e dois pensamentos. Era necessário matar um leão por dia, botar a cara para a porrada, “enfrentar a ventania” como sempre dizia, com voz rouca e séria. Sábado à noite, ia rolar um bonde. “Vamos sacudir geral, aqueles canalhas. O morro vai ser nosso de novo”, falava o chefe. Ele gostava do chefe, conheciam-se desde garotos, foram criados juntos. Juntos foram preparados para o crime, na escola da vida. Seu conceito de bem e mal, poderiam ser analisados como conceitos adquiridos em um mundo paralelo, uma outra dimensão, grandiosa, visível e esquecida. Era preciso decidir. Sábado à noite seria a final do concurso. Se perdesse a final, perderia a chance de mudar. De ser outro. De produzir mudanças no mundo a sua volta. Se perdesse o bonde, seria uma covardia, uma traição. Mais uma vez o dual, a eterna luta, começava por dentro e impregnava o meio. Amanheceu, um sábado mais bonito. Talvez porque ele quisesse que assim o fosse, talvez porque precisasse. Não acreditava em milagres, acreditava na necessidade de que o milagre acontecesse. No trem da malandragem o R A P foi seu trilho, ganhou o concurso, deu entrevista a jornais e revistas especializadas, falou a MTV, e assinou contrato com a Bandana Discos. “Vou mudar a comunidade, com uma nova escolha e uma nova escola”, sonha alto. Já que é domingo à tarde e o bonde não voltou...
Sylvio Neto
Publicado no Recanto das Letras em 24/11/2005Código do texto: T75648