sábado, 17 de novembro de 2012

A BULA

    Não tinha apego à vida. O que não significa que desejava a morte. Seus cuidados com a saúde eram nenhum. Sedentário, não fazia exercícios, ação que julgava um grande excesso, era um móvel de jacarandá, movia-se por extrema necessidade e mais por força e ação do dia a dia do que de sua própria vontade.

    Não tinha uma vida permeada por regras. Até gostaria de ser uma pessoa metódica, mas, não o era. Tinha manias, algumas esquisitas, poder-se-ia dizer “muito esquisitas”. Sua vida não era normal, mas não se poderia afirmar que era um excêntrico.

    Não tinha o vigor criativo e doentio de Eugene O’neil, e talvez dele nunca tivesse ouvido falar, da tragédia não se encantava nem com o bode nem com os cantos, partes de um culto que lhe eram tão familiar quanto O’neil. Os problemas eternos do homem não o interessavam, o destino, as paixões e a justiça, eram para ele questões teóricas que acentuavam a desordem mental inerente a todo ser humano, preferia rir e tomar uns tragos, brindar o dúbio comportamento e o escárnio que sentia da sociedade.

    Era um homem de vanguarda, um obreiro, um para militar a serviço de sua própria tragicomédia. Obra original de sua autoria, que jamais iria contextualizar.

    Sentia-se cheio de vida, e de sua saúde regozijava-se. Uma de suas manias era comprar remédios. Só para tê-los em casa, para ficar observando, uma coleção da qual podia debochar. Era realmente um homem de vanguarda.

    Desprezava a ciência e os médicos, Sua hipocondria, era de colecionador, de vitrine. Que diria ele desta comparação?. Tinha na ponta da língua, diversos casos de erro médico, com detalhes de datas, vítimas e locais. Por não gostar da internet, gastava horas infindas em cartas, artigos e teses a revistas, jornais, programas de Tv e rádio. Tudo o que pudesse fazer para expressar seu repúdio a ciência de Hipocrates de Cós.

    Tamanha era sua atuação, que chegava a ser conhecido de membros do Conselho de Medicina, que o odiavam. E por tratar-se de um Conselho muito corporativista, o contágio do repúdio circulava de médico em médico. “Dia da caça, dia do caçador”.

    Certo dia foi acordado no meio da noite para socorrer um vizinho. Na verdade um grande desafeto. Não era nenhum estoicista, mas também não vivia somente para o prazer, afinal não se deve negar água a quem tem sede. Levou o indivíduo - termo usado por ele, para designar o vizinho doente – ao hospital, estacionou onde era possível, em frente a uma garagem, mas naquela hora não haveria de importunar ninguém, pois, somente iria despachar o indivíduo e sua família e voltar aos braços de Morfeu. Para sua surpresa, os minutinhos em que se demorara haviam se constituído em meia hora, e seu carro estava com os vidros laterais quebrados e fora empurrado para o meio da rua. Seu ódio, que quase sabia guardar bem, tomara-lhe todo o corpo e mente. Seu repúdio a classe médica e a necessidade da utilização de seus serviços tornara-se ali maior e maior...
    
    Quando se dissipou parte de sua ira, pode ver o cartaz que pendia sob o portão de garagem que travara: “Não pare nem por um minuto, pois, se eu quiser entrar ou sair, serei obrigado a quebrar seu vidro lateral”.
    Maldito hospital, malditos funcionários, maldita ambulância que não socorreu aquele besta fraco e malditos médicos, resmungou – por uma semana seguida.

    Era realmente um homem da oposição, da diferença. Seu conceito de realidade fazia-o destronar todo o pensamento em torno do pecado, da moral e da graça. Embora tivesse pouca leitura e passasse a quilômetros de distância da intelectualidade filosófico-literária, tinha decorado uma passagem de Nietzche: “o que é bom? Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, à vontade de potência, a própria potência”.
 

     Pois é, certa noite deleitou-se em Whisky. Foram duas garrafas de Jack Daniel's, e o coração gritou. Uma dor insuportável no peito, coisa séria. Nunca havia se sentido assim, aliás, jamais houvera sentido qualquer dor, mas, intuitivamente soube que aquela medida era exagerada. Dor e medo, no espartano, dor e medo – estava doente. Gritava feito criança, toda a casa estava nervosa. Os gritos chamaram a atenção da vizinhança e por seqüência ao tumulto, da polícia. Faltava a ambulância. O homem mudara de cor, arfava por não conseguir respirar.
 

    Sua mulher sai aos gritos: Uma ambulância, uma ambulância. Essa chega, e quando adentra o imóvel, já é tarde, o homem caído no chão sobre uma imensidade enorme de frascos, vidros, tubos e ampolas de remédios dos mais variados tipos e tamanhos. Dava a impressão de que num último e gigantesco ímpeto, tentara alcançar a salvação no que tanto houvera desprezado. Preso a sua mão uma bula, que dizia, “não use este medicamento antes ou após ingerir bebidas alcoólicas. Não cessando os sintomas procure imediatamente um médico”.


 O universo às vezes conspira contra. Não existe verdade mais absoluta que a própria realidade.

Sylvio Neto
Postado No Recanto das Letras
Enviado por Sylvio Neto em 22/11/2005
Código do texto: T74947

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

PERDURÁVEL

Dou aqui, lugar a um poema escrito e postado em meu FaceBook, há dois dias atrás, por conta das palavras e comentários, de dois queridos amigos escritores:

Pelo que me deixou muito hávido, envaídecido e potente, às palavras de Marlos Degani, poeta premiado, que é autor do livro Sangue da Palavra e editor do Blog de mesmo nome é pessoa que trata com esmero a sua entrega ao universo poético. Escritor que vai além da literatura, pois que, trás para o circulo de seu poema e de sua poesia todo um tratado filosófico que é de seu pensar e autoria.
E que ainda na reunião destas qualidades acima descritas - vive a perseguir e perseguir o poema...Desacelera sua concisa e precisa busca, estilosa e dentro da cadência normativa da Lingua Portuguesa e da Literatura Brasileira, para tecer o que recebo como um elogio...
" Quisera eu ter um naco que fosse desta sua visceralidade (ampla e veloz). Quisera eu..."
 
Por conta, do olhar carinhoso - nunca caridoso - sobre a minha pequena e fina obra, pelos comentários que sempre surgem, pelas idéias de somar que sempre vem de seu coração de olhar com senso crítico e criativo, que acabam me sendo incentivadores, Cezar Ray, o editor do Blog Zarayland, campanário de lembranças e memórias que de forma célere ainda consegue ser ricamente ilustrador de um tempo, de um momento, de uma cena ou de um movimento...
"Marlos Degani nunca me elogiou assim (ciúmes) mas ele tem razão. Nem só pela visceralidade que existe em vc. Acho que vc conseguiu desta vez escrever sua obra prima. Talvez, não o poema todo. Mas os versos finais "Quisera ter encontrado / Uma forca / Dentro de teu coração... É realmente um dos versos mais lindos e mais chocantes da literatura mundial. E falo isso com uma inveja danada!!!!!"

Muito, muito, muito obrigado...

FRUGAL
 
Entrei e procurei
Nada achei
Nada havia dentro
Daquela cabeça
Daquele coração
Quase todas as palavras
Surtavam
Pois não diziam, o que devem dizer
Não havia plexo
E os abraços não abraçavam
Nada tinha nexo
É tudo muito pérfido, tênue
Oh! Plasma ignóbil, fugaz e plissado
E meu âmago em veneta, arroubo, ígneo
Chora esta  nódoa
E destoa seu normal e simplório coloquial
Para dilapidar
Palavras
Que nunca falou a ninguém
Quisera ter encontrado
Uma  forca
Dentro de teu coração...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Senador dos Bares

O SENADOR DOS BARES

 
Olha-lo caído ali no chão, sobre uma sangueira rubra e espessa, gerava várias sensações, um quase nojo, uma quase pena e algum pavor eu acho. Era uma cena de cinema com fotógrafos, jornalistas, a polícia e curiosos, ilustres desconhecidos como que figurantes compondo uma cena.
 
E eu, coadjuvante curioso e quieto, vi o mundo girar veloz em minha memória, vitima que era daquela circunstância caustica, formada por aquele cheiro, aquela visão, aquele burburinho, com comentários desencontrados e inúteis.

 Em minha mente um outro filme começou a rodar. Hora em câmera lenta, hora em fast foward. Era difícil conciliar as coisas, o flash back e o real, o silêncio do corpo caído, e o burburinho geral. Minha mente rodava confusa.

 Olhei para o bar em frente e, veio nítida a imagem de uma conversa anterior, onde ele, engajou-se em um discurso de cunho social apaixonado. Era um homem de leitura, não propriamente um intelectual, mas tinha uma boa formação. Discorreu então, neste breve momento de nossas vidas, sobre a formação da política local, tinha de cabeça dados históricos, nomes, datas, fatos. Faltava-lhe os documentos, prova de seus argumentos, pois, qual nada, era ele o próprio documento “in vitro”.
 
Era uma conversa divertida, conversa de bar, entremeada por rápidas interrupções para piadas, gargalhadas e espiadelas nas perdidas - nome que dava as mulheres de seu gosto, que passavam pela calçada adjacente - e longos e prazerosos goles de cerveja, que exigia, “só aceito Bohemia”.

 Era difícil aceitar como fato, a condição que hora se apresentava. A caneta em sua mão fez-me concluir, que deveria ele estar fazendo o que lhe era peculiar, “dando nome aos bois”. Teimava em apresentar nominalmente os culpados pelo Brasil que temos. De forma hierárquica e com muito método, chegava a propor uma longa lista de nomes a nível federal, estadual e municipal, concluindo com o bairro: “Estes são os matracáfios do nosso povo, os destruidores de nossa sociedade”, bradava.
 
Merinha, a dona do bar, sempre lhe dizia, “esta mania de ficar se metendo em política e mexendo com a mulher dos outros, ainda vai te dar problemas sérios, homem de deus, vê se fica direitinho!!”. Ao que lhe respondia sorrindo “Eu sou o Senador dos bares e o Mangueirinha, é meu palanque. Bota mais uma Bohemia no balcão.” E ria, e falava e olhava batendo palmas às perdidas que passavam.
Ali no chão, semeando a terra, vários homens em um. O cliente, o cidadão, o antropólogo, o sociólogo, o homem, O senador dos bares. E eu, aqui sou, apenas mais um que nem sabia seu nome, sigo para casa, ainda atordoado, perguntando-me por que nunca houvera perguntado seu nome, e se vale à pena viver, e se nossa opinião sobre a verdade não pode ser dita.
Sylvio Neto
Publicado no Recanto das Letras
Enviado por Sylvio Neto em 07/12/2005
Código do texto: T81981

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

MANTO AZUL


Manta azul escura

que me cobre

noite que ando


lençol de negrume

brilhante

que me acode

por quanto

ando em dormir

jamais

 
travesseiros

que não uso

no enlouquecer de ouvir

fronhas

em tanta voz tanta voz
 

e eu loquaz de andada

sem azimute

chorume inquieto

de um tempo voraz

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CONVERSA DE BAR: O Ferramental Dos Gestos E Da Palavra



HISTÓRIAS DE BAR

O Ferramental dos Gestos e da Palavra

Não fosse a minha grande preguiça em escrever diariamente, tal como fazia antes, com toda certeza, vários livros estariam prontos a serem rodados com grana própria – que não tenho – ou à serem, enviados à aprovação, das várias e muitas editoras...Um dos títulos seria, com toda certeza, o que se pode ler acima...

“ontem, domingo dia 04 de novembro de demiledoze, tentando curar  uma tristeza e solidão inefável, que me invadia a cabeça, tronco e membros, disputei um pedaço do balcão da birosca do Lourival...Uma Antarctica e dois pedaços de costela, pedi...E iniciamos o papo, sobre tudo que se pode imaginar, já quando estava, na segunda cerveja, surge um conhecido que por hora não lembro o nome e, pediu um conhaque no que dupliquei meu pedido...Lourival, bota um pra mim também  e traça com catuaba – o melhor remédio para sentimentos inefáveis é perder a razão e perder a razão, para este poeta menor é ficar em estado alterado de mente, com álcool – ato contínuo, contei a história de minha experiência pessoal com um “brandy”, o verdadeiro conhaque, que provei oferecido por meu irmão, lá no Rei do Cozido, na Vila são Luiz, em Duque de Caxias...

A esposa do Lourival se aproxima e pergunta: - como é esse teu som com efeitos e telão?...Expliquei e já emendamos no papo sobre pagamentos, falta de pagamentos, pedidos de desconto, desconsideração com a importância de um som numa festa, intromissão dos convidados nos sets de musica, o fato comum e a quase obrigação de usar os vários pen drives que os convidados costumam levar para as festas, para ouvir a musica que gostam, em detrimento da musica preparada e sugerida pelo “dj” da festa e/ou das musicas previamente acordadas com o dono da festa e, ainda  sobre o  fato, de que atualmente, quase todos os “garotos’ que tem um computador em casa – seja desktop ou notebook – terem,  instalado,  o programa virtual dj – que é free – e se pensarem “dj´s”, fato que os torna verdadeiros  pitaqueiros nas festas...

A este comentário, somei rindo, um outro, que deu origem ao que este prolixo texto, quer fazer referência: - e o pior é que eles não se preocupam em comprar um equipamento de som...O investimento é meu e a onda tem de ser deles...

O amigo que chegara e no momento já dividia comigo uma outra cerveja, emenda: - não há trabalho sem ferramentas, eles tem de ter as suas próprias ferramentas...Pois é, completo, rindo ainda mais, com as mãos e os dedos só escultura em barro ou massinha...

O amigo, continua, num falar bacanudo, que somava o sotaque pernambucano e o gestual mover de corpo que era seguido pelo dançar lento e mágico das mãos, que ostentavam um anel em cada dedo: - quando eu sentei praça no Exército, lá no 14 RI de Recife, um sargento levou a gente pra faxina, que demorou muito a ser completada, fato que levou o coronel comandante a ir até nós e perguntar por que ainda estávamos naquele ponto e, eu respondi, como é que eu vou transformar a minha mão em pá para recolher o lixo? – o sargento enlouquecido disse que me puniria, pois além de eu não ter pedido permissão para falar, não se podia responder assim,  ao coronel...E o coronel me deu três dias de dispensa, óh!...Quando eu voltei, ele me perguntou por que eu havia respondido daquele jeito e eu lhe disse, meu coronel, sem as ferramentas certas o homem não progride, pois que,  até os índios e os homens das cavernas usavam ferramentas e ele me disse volta pra casa e fica mais três dias...

E rindo, continua, quando me apresentei de volta ele me perguntou, você quer servir a mim e a minha família em minha casa?...É claro, meu comandante...E desde aquele dia nunca mais botei os pés no quartel e usei farda, servia somente ao coronel e a sua família, lá conheci a sua filha e, estou casado com ela faz  40 anos...óh!